Hoje falo-vos de algo que me irrita profundamente… a desinformação – e quando este enviesamento toca nas áreas em que sou artista de corpo e alma, não posso deixar de me manifestar de forma expressiva!
Este texto tem como objetivo claro desmistificar ideias pré-concebidas e incorretas sobre uma técnica que se popularizou no estacionário de casamento: a aguarela.
A aguarela é uma técnica de pintura, com base em pigmento e água, que nos permite criar imagens abstratas e realistas, dependendo da perícia, modo de expressão e intenção do seu autor.
Quantas vezes ouço “isso não é aguarela porque é realista”, algo que não faz qualquer sentido, como podem ver numa seleção muito rápida da coleção do Brooklyn Museum, com exemplos do séc. XIX e XX.

1 – Renaissance Woman Reading a Letter de Louis-Robert de Cuvillon, 1886. 2 – Rhode Island Coast: Conanicut Island de William Trost Richards, 1880. 3 – The Mansard Roof de Edward Hopper, 1923. 4 – Zuleika de John Singer Sargent, 1906
Como podemos observar, a aguarela é um meio muito versátil que pode ser explorado para diferentes resultados, todos eles autênticos e espetaculares.
Um esboço rápido assumido como obra final e uma imagem criada com sobreposição de camadas, podem ser obtidos a partir dos mesmos meios (água, pigmento, papel), com resultados distintos e singulares, nenhuma das abordagens é mais ou menos autêntica, mais ou menos “aguarela”.
Infelizmente, o que tem acontecido é a popularização do seu aspeto primário – uma mancha de cor aguada traçada a pincel – como o auge da técnica. E não é.
Chamem-me tecnicista e rigorosa, mas cada coisa tem o seu lugar, tal como escrever à mão não é sinónimo de caligrafia, na sua verdadeira denominação.
Um esboço rápido de cinco minutos não é a mesma coisa que uma aguarela que leva meses a ser realizada. São dois objetos válidos, mas distintos. E se o material é o mesmo (novamente, pigmento, água, papel), o primeiro será sempre um esboço e o segundo será sempre uma obra.
Como me disse um professor, um grande e conceituado artista internacional, “primeiro conheces a técnica e só depois fazes com ela o que queres”. Tal como na cozinha, na escrita, na música, em todas as artes, primeiro aprendemos sobre os ingredientes, as técnicas, as especificidades, e depois sim, estamos aptos para criar a partir do conhecimento e experiência. Só conhecendo as regras, as poderemos dominar e quebrar – com consistência, valor acrescentado e aporte duradouro.
Na aguarela, a técnica pode parecer inexistente, sendo o resultado simplesmente obra do acaso, como a mera reação entre pigmento, água e temperatura. Ora não é nada disto, mas sim um exímio exercício de domesticação, tão excecional, que parece, a olhos mais simples, uma casualidade. E ao ser uma imagem complexa (ao invés de um esboço), também interpretada como menos artística e hábil, por ter menos “acaso”. Nada poderia estar mais longe da realidade…
SERÁ AGUARELA?
É outra questão que assombra esta expressão artística.
Com a chegada dúbia e em força Inteligência Artificial e a evolução da tecnologia, parece que o feito à mão e artesanal se tornou algo difícil de identificar, quando não temos os outros sentidos para o observar.
Na aguarela, a qualidade expressa-se com o domínio da água. É ela que vai ditar a consistência da cor, a forma como ela cobre ou se sobrepõe a outra. As condições atmosféricas (tempo de secagem) e as características do papel são também fatores responsáveis pela forma como cada pincelada ganha corpo e forma. Logo, mesmo com uma repetição de gestos, nunca haverá duas aguarelas idênticas.
Digitalmente, já não é o caso. O ambiente artificial não depende do papel, das condições atmosféricas ou da perícia do seu autor em controlar a água. É só decidir as ferramentas disponíveis no programa e deslizar a caneta sobre o ecrã. Os erros apagam-se com um simples “undo”, nunca há excesso de água nem de pigmento. Não é necessário voltar ao início e gastar mais uma folha de papel, perdendo tudo o que já se fez. Com um clique, já está corrigido.
Se é menos válido? Não! Só não é aguarela nem uma aguarela digital: é a criação de uma imagem digital que simula uma aguarela. Devemos dar os nomes certos às coisas.
Para mim, é como comprar uma mala Louis Vuitton ou uma Luis Vítor. Têm a mesma função, mas não são a mesma coisa: na qualidade da matéria-prima, na experiência e know-how associados, no estatuto que projetam ou até na fruição do seu utilizador.
Somos livres para escolher o que valorizamos e devemos fazê-lo de forma consciente e informada – isso é fundamental.
Se gostam de esboços, se gostam de aguarelas ou se gostam de imagens digitais, é uma questão de gosto. Necessário é conhecer as diferenças e iniciar a conversa a partir desse ponto de conhecimento.
A desinformação limita-nos e não nos deixa crescer. Conhecimento é poder. Choose wisely!
Para os mais curiosos sobre esta maravilhosa técnica, descubram mais aqui.
O QUE É UMA AGUARELA?, um texto escrito a quatro mãos: Alexandra Barbosa e a imprescindível Susana Esteves Pinto.
As imagens das aguarelas pertencem à coleção do Brooklyn Museum e estão disponíveis para download.